Ou seja, nossa sentença sobre alguém ou alguma coisa vem mesmo antes de vermos e ouvirmos a pessoa/situação em questão. É assim que, segundo o intelectual, nós classificamos os outros e criamos as respectivas imagens mentais. Para Moscovici, essas representações que fabricamos "são sempre o resultado de um esforço constante de tornar comum e real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um sentimento de não-familiaridade".
O 'nariz-de-cera' dos parágrafos anteriores serve para ilustrar as minhas sensações ao ler matéria sobre o desaparecimento de uma jovem moradora da Ilha de Itamaracá (PE), publicada na íntegra (só para asinantes) na edição impressa do Diario de Pernambuco de hoje e em versão reduzida no matutino online.
O título, "Evangélica desaparecida há 16 dias", já intriga pelo uso da opção religiosa da moça como aposto. Não me lembro de ter lido alguma vez frases parecidas como: "Procura-se espírita desaparecido", "Católico sofreu acidente" ou "Agnóstico sumiu de casa". Como se o fato de ser ou não evangélico (ou protestante, kardecista, umbandista, ateu) dissesse mais ou melhor sobre alguém do que sua profissão, sexo, faixa etária ou naturalidade.
De acordo com a matéria, é provável supor que a jovem desapareceu devido a intrigas relacionadas à conduta moral da moça, que seriam praticamente trivialidades se o 'desvio' que ela teria tomado não fosse inaceitável pela igreja da qual faz parte. Assim sendo, creio eu, optou-se por utilizar o adjetivo "evangélica" para que se relacionasse melhor o título à situação contada no texto.
Tudo bem, até aí eu compreendo relativamente. Mas minha boa-vontade para com o rumo que tomou a matéria foi para o reino do beleléu quando me deparo com a entrevista realizada com o namorado (suposto pivô, portanto, do imbróglio) da moça. A primeira pergunta fez apertar meu coração de estudante: "O que você acha dessas acusações contra Mirela?"?
Amigos, que os integrantes da igreja que a jovem freqüenta tomem como "acusação" um disse-me-disse sobre sexo entre namorados, eu relevo. Mas nós, repórteres, tomarmos isso como fato e sentenciarmos como acusação a possibilidade de ter ocorrido um ato sexual consentido entre dois jovens maiores de idade, perdoem-me, é de fazer chorar.
"Vocês nunca tiveram relação sexual"? é a pergunta que vem em seqüência. E é da sua conta, cara-pálida? Mais uma vez, o jornalismo corroborando para a manutenção dos arcaismos. E se o rapaz respondesse que sim (o que não o fez)? Estaria, então, dada a sentença do caso pelo jornalista? A moça, enfim, teria incorrido em pecado capital?
O que poderia ter sido uma matéria legítima sobre um fato real e preocupante (desaparecimento de uma jovem), que serviria também de alerta sobre os efeitos maléficos da maledicência e preconceito (a moça ter sido vítima de fofoca maldosa e invasão de privacidade, aliada a uma forte dose de conservadorismo bobo), acabou se transformando - no meu ponto de vista - numa peça tão conservadora e maledicente como a pregada contra a garota. Que Mirela não vire mais um número nas frias estatísticas, encontre seu caminho e volte logo para casa.
Pingos nos is
(se ainda não fiz, ainda há tempo para um esclarecimento, que sempre faço aos meus alunos. visto, sem medo, a carapuça para boa parte das críticas à imprensa que tenho feito e ainda farei neste espaço. se eu aponto as falhas, é porque também já tropecei muito pelo caminho, e para que pensemos sobre elas - e, se possível, não as repitamos. pois que falar é sempre mais fácil. difícil é arregaçar as mangas e fazer acontecer)
2 comentários:
Adri, ninguém melhor do que nós mesmos para apontar o dedo na ferida... bjs
Eu até ia escrever algumas linhas sobre o assunto, mas depois de ler um texto desses, só me resta dizer uma coisa: Adriana, tu és 'phoda'! E ponto.
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