segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Cabeça de turco


Não há título mais horrendo em toda a história das traduções do que o escolhido para o livro-reportagem do jornalista alemão Günter Wallraff, publicado pela primeira vez em 1985. A aberração fica por aí. Já conhecia toda a saga desta figura, mas, inexplicavalmente, nunca havia lido seus textos.

'Engoli' o livro acima de uma só tacada, esta semana. Mesmo levando em consideração o método questionável utilizado pelo autor - travestiu-se de alguém que não era, mentiu, provocou situações e coisa e tal -, ele consegue descer aos porões, ao nível mais baixo da sociedade alemã da década de '80 (Ganz unten, título original, significa literalmente "bem embaixo", na parte mais baixa, no fundo do poço).

Disfarçado por dois anos como um turco, ele, alemão de nascença, sentiu na pele todos os dissabores em estar 'do outro lado', bem como a solidariedade que sempre acaba surgindo entre os que se encontram deslocados e apontados como estranhos no mundo.

A reportagem é um relato contundente, duro, por vezes até cômico (na medida do possível) da tamanha irracionalidade que se transforma em brutal violência contra quem é 'diferente' - outra língua, outro sotaque, outra cor ou costume.

Confesso que minhas experiências iniciais com a Alemanha sempre haviam sido cor-de-rosa. Provavelmente por viver lá não como uma estrangeira apenas, mas como uma estrangeira dentro de um núcleo familiar alemão, nunca havia passado por nenhum constrangimento. Muito pelo contrário.

Minha última visita ao país, contudo, me foi extremamente dolorosa. N'outra região, não mais no norte que me havia sido tão amistoso, mas no extremo sul, senti na pele o que a intolerância, a burrice e irracionalidade podem provocar. Eu, que sempre teci loas àquele lugar, fiquei decidida a não voltar. Em pleno 2008, ouvi de uma imigrante brasileira (!): "vamos atravessar a rua, pois esse pessoal é turco, e você sabe, deve ser tudo terrorista". Entre os "terroristas", havia várias crianças.

Voltando ao livro...O autor se transforma em Ali, um imigrante ilegal que se submete a toda sorte de trabalhos para sobreviver, sofrendo humilhações espantosas, tal qual boa parte dos imigrantes. Quando morei por lá, conheci e me tornei amiga de um Ali. Iraniano, gráfico profissional, havia recebido asilo político em 1999. Sofrendo ameaças e perseguições na sua terra tão adorada, só lhe restava fugir para outro país.

Nos tornamos colegas de um curso de alemão para estrangeiros, e passamos - após o choque inicial e inevitável de culturas, com todas as negações e comparações naturais nesses processos - a ser grandes amigos. Ali era doce, seguia os preceitos da religião muçulmana, aceitava qualquer emprego que aparecesse. Tímido, sempre andava olhando para o chão. O último 'emprego' de que me lembro foi como distribuidor de panfletos na rua. Logo ele, acostumado a imprimir livros em sua loja própria. Seu melhor amigo era Masud, matemático iraniano que sonhava em ter seu diploma validado para poder voltar a ensinar numa universidade alemã.

Essa dupla tão amável sofria toda a sorte de preconceitos. Não apenas dos alemães, mas principalmente entre nosostros, latinos. Zombavam de seus hábitos pudicos, de suas roupas puídas, das dificuldades em aprender o idioma. Inteligentíssimos, penaram para se acostumar ao alfabeto ocidental, mas quando conseguiram se mostraram exímios conhecedores da obscena (de tão difícil) gramática alemã.

Quando estava prestes a voltar para casa, fiz uma despedida para a qual foram todos os meus amigos do curso. Ali era o mais emocionado. Ao término da festa, reclamou da pimenta que eu havia dado de presente a ele ("muito fraca, Frau Santana, no Irã é bem melhor") e da fita que eu havia gravado para ele ("a música é muito lenta, não dá para dançar"). Deu-me um abraço forte, e me disse, entre lágrimas, num perfeito alemão, já quase sem sotaque: "Du wirst mir fehlen" (Você vai me fazer falta).

Nós, que no começo havíamos discutido tanto sobre o tratamento dado pelos muçulmanos às mulheres, que quase havíamos deixado de nos falar por ele achar que era um absurdo eu morar com o meu então namorado ("você precisa se casar, Adriana"), nos despedimos com a dor aguda com a qual se despedem os grandes amigos. E para nunca mais.

Não pude deixar de pensar em Ali ao ler sobre todas as atrocidades cometidas contra os imigrantes. Ele me acompanhou em todas as páginas. Vi seu rosto marcado pela saudade de casa em todas as fotografias publicadas na obra. Reconheci seu esforço em se integrar àquele mundo tão diverso do seu em todos os relatos.

Não sei se pelo fato de a temática me ser cara, ou se impulsionada pelas lembranças de Ali, mas fiquei encantada com o trabalho de Wallraff. Minha próxima aquisição será a obra anterior, na qual ele disseca a redação do sensacionalista Bild Zeitung. E recomendarei a todos os meus alunos como um dos grandes exemplos de como fugir da cordialidade jornalística.

Em tempo: de todos os meus colegas da época, entre os quais uma grande amiga colombiana, jornalista como eu, a único carta que chegou para mim depois que voltei ao Brasil foi escrita num alemão quase perfeito, com letra cursiva (uma vitória para quem conhecia apenas o alfabeto árabe), cheia de delicadezas e saudades, pelo meu amigo Ali.

Perdemos o contato, mas sempre me lembro dele toda vez que me deparo com a estúpida insistência humana em condenar o que não é espelho.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

João do Rio

Numa dessas coincidências inexplicáveis, ou sicronicidades junguianas, como queiram, estava eu a me lembrar de que precisava ler mais João do Rio quando esbarro, no mesmo instante, com o seu Alma Encantadora das Ruas (aqui em pdf) numa estante da Livraria Cultura, numa edição bem em conta.

Hoje não vou me alongar, mas queria destacar um pensamento desse nosso 'patrono' dos repórteres e cronistas. Falando sobre as características necessárias para se entender a 'psicologia' das ruas, coisa que ele, Paulo Barreto (seu nome verdadeiro), fazia com maestria de gênio, conta o que cabe, para mim, como a melhor definição de repórter já feita. Mesmo que, em princípio, ele se referisse à qualidade de observador do dia-a-dia do comum das gentes, sendo jornalista ou não. Ei-la:

"É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneuer e praticar o mais interessante dos esportes - a arte de flanar. É fatigante o exercício? (...) Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem."

Flanemos, pois, colegas. Flanemos!

(em tempo, a obra desse genial flâneur pode ser acessada, gratuitamente, através da biblioteca digital Domínio Público, no link http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action=&co_autor=53)