domingo, 4 de maio de 2008

Sobre a necessidade do espanto


Contador de homicídios no Recife: para se lembrar o que se insiste em esquecer

Sempre tive em mente que chegaríamos a um ponto sem volta, 'of no turning back' (como diriam os que fizeram cursinho de inglês), quando perdêssemos de vez a capacidade para o espanto, para a estupefação. E esse momento chegou há muito, nós poucos é que ainda insistimos em não admitir.

Confesso que por muito tempo vesti comodamente o manto da normalidade, que me permitia conseguir dormir à noite após assistir a tantos disparates, a ver tantos descaminhos. Hoje, não conseguiria levar adiante um terço das tantas matérias policiais que fiz nas minhas primeiras incursões no jornalismo, já se vai mais de uma década.

Quantas vezes não ensaiei um sorriso para desdenhar de colegas inocentemente estupefatos, que propunham pautas furadas, natimortas, a respeito da profusão de meninos de rua nos sinais de trânsito e de mendigos nas calçadas? Tolos, pensava eu, em acreditar que histórias como essas, tão comuns e batidas, suscitariam interesse nos leitores. Como eu imaginava, elas realmente sequer chegavam à mesa do editor.

Guardei todas as más lembranças numa caixa cerrada, numa área pouco visitada da minha cabeça. Não são poucas. Tampouco fáceis de digerir. Por muito tempo, consegui evitá-las. Agora, elas começaram a escapar do esconderijo. Vêm para me assombrar. E para me lembrar de que eu nunca deixei de me espantar, mesmo quando usava o não-espanto como estratégia profissional.

Uma delas voltou recentemente, apesar de eu acreditar tê-la descartado da memória na mesma tarde em que aconteceu. A 'personagem' (que jargão mais infeliz) de uma pauta, menininha vítima de uma estúpida, irracional e covarde violência sexual. Como poderia ousar acreditar haver realmente esquecido a sensação de soco no estômago que tive ao ler a placa pendurada na caminha do hospital? Era o meu nome ali escrito, com todas as letras, tal e qual na certidão.

Há um tempo, ouvi um depoimento de um jovem jornalista (já citei a situação neste post), visivelmente desapontado, que me reacendeu a estupefação. Para proteger uma fonte de uma muito provável e séria represália, ele havia combinado com o entrevistado de não mostrar seu rosto. Mesmo com essa orientação do repórter, a edição optou por desfazer o acordo. Ao reclamar, desesperado, com o responsável pelo absurdo, ouviu um cínico "bem-vindo ao jornalismo" como resposta.
Como me arrependo de ter, um dia, desdenhado dos estupefatos. Pois que a cordialidade jornalística anda de mãos dadas com a falta de espanto.

(Desde a última quarta-feira - 30 de abril -, o Recife conta um contador de homicídios instalado numa movimentada avenida. Iniciativa dos editores do PEbodycount. Um grupo de jornalistas que nunca deixou de se espantar. Houve quem os acusasse de traidores, por "contribuir para a fuga de turistas". Tomara, de coração, que também esses venham a se juntar ao coro dos estupefatos, num futuro próximo).

5 comentários:

Anônimo disse...

que texto bonito, adriana. aliás, vc sempre escreve bem, mas esse foi especial.

Adriana Santana disse...

pôxa, eduardo, muito obrigada pelo comentário. os textos, de qualquer pessoa, sempre me soam melhores quando quem escreve não tem medo do ridículo. eu me esforço para não ter. um abraço.

Anônimo disse...

irei guardar essas sábias palavras.

Anônimo disse...

"A 'personagem' (que jargão mais infeliz) de uma pauta".
Por que 'jargão infeliz'? Tu podes compartilhar tua opinião comigo? ;)

Beijo!

Anônimo disse...

Eduarda, acho que o termo me incomoda por dar a idéia de que a pessoa vai atuar um papel bem específico e calculado dentro da história, um papel, naturalmente, imposto por quem faz a matéria. Na verdade, é uma grande bobagem e eu nunca havia pensado a respeito, mas me incomodou quando escrevi.