quinta-feira, 16 de abril de 2009

Jornalismo de gatos e lebres

Alice, a lebre, o gato e o Chapeleiro

(texto originalmente publicado no Suplemento Cultural Pernambuco, edição de abril de 2009)

Tenho medo, muito medo mesmo, dos puristas. Mas antes um puritanismo às claras do que a cultura do deus-dará disfarçada de avant garde. O campo minado do jornalismo é terreno fertilíssimo para a defesa da anarquia e frouxidão da ética disfarçadas de mudernidade.

Quem insiste num mínimo de rigor de método e respeito a regras simples no jornalismo pode ser facilmente taxado de démodé nos dias contemporâneos, acusado de ir contra a maré da democratização do pólo emissor, de querer refrear a onda libertária da comunicação de todos para todos ou de viver numa era que já passou.

Eu sou a favor de tudo isso: democratizar o acesso, proporcionar que outras fontes e outras vozes não só apareçam na imprensa, como também produzam conteúdo, de se fazer um jornalismo sobre o comum das gentes, calcado não apenas em efemérides e em fatos ‘obrigatórios’. Mas nem por essas razões eu me permito aderir à hibridização do jornalismo com a publicidade, por exemplo.

E que não me venham com a já enfadonha e indigesta discussão do “não existe objetividade e imparcialidade possível” na atividade jornalística. E não existe mesmo, naturalmente, mas Walter Lippman já cutucava os possíveis detratores dos jornalistas, na década de ’20 do século passado, lembrando que o método de investigação jornalística é que precisa ser objetivo, não os jornalistas.

Mesmo descontando o tom, por vezes, catastrófico (do qual comungo), o pesquisador em Comunicação Leandro Marshall cunhou o termo “jornalismo transgênico” para descrever o que seria essa forma ‘híbrida’ entre os gêneros jornalístico e publicitário. Essa hibridização responderia pelo fato de um gênero com finalidade publicitária (release ou texto produzido por uma assessoria de imprensa para divulgar temas de interesse de um cliente) trazer o formato de um gênero de domínio jornalístico (matéria, reportagem, texto jornalístico). Esse filhote intergêneros pode ser visto facilmente, quase que todos os dias, em veículos de comunicação mundo afora.

Um exemplo são os famigerados encartes, sem diferenciação tipográfica ou mesmo de estilo editorial, publicações pagas por instituições públicas e privadas, geralmente um resumo – em forma de reportagens – do que tal empresa realizou num determinado período de tempo.

Prefeituras e estatais são campeãs desse tipo de ‘serviço jornalístico’, que, não custa ressaltar, muitas vezes não vem identificado como material de cunho publicitário, e não poucas vezes é escrito, fotografado e editado pelos mesmos profissionais que fazem parte do corpo de jornalistas contratados desse veículo. Ou seja, os jornalistas que escrevem esses textos ‘encomendados’ são os mesmos que trabalham para levar ao público informações conseguidas através do trabalho diário de apuração.

É claro que são os anúncios que fazem o jornalismo andar e existir, e a relação entre essas duas esferas, apesar de tantos aspectos diferentes em relação à forma, conteúdo e até objetivos, possuem vários pontos de convergência. A passagem do jornalismo com função propagandista para a informativa, por exemplo, só foi possível após a desvinculação econômica dos jornais dos financiamentos políticos, ainda no século 19, como ressalta o teórico português Nélson Traquina.

Só com as receitas publicitárias, ou na transformação do jornalismo em negócio e não mais apenas instrumento de disseminação ideológico-partidária, é que os veículos adquiriram mais independência. No Brasil, o primeiro jornal diário a circular, o Diário do Rio de Janeiro, fundado em 1821, inaugurou o periodismo de anúncios e informações no País. Publicava preços de produtos, anúncios de compra e venda, informes de propaganda e particulares e, assim, apresentava um panorama do dia-a-dia dos 160 mil habitantes da cidade de então.

O nó da questão reside no propósito, no compromisso maior – ao menos em teoria – desses dois lados da moeda. Natural que o jornal ou a revista não irá publicar, com raras exceções, notícias que sejam prejudiciais aos proprietários, aliados políticos e parceiros comerciais. Mas o compromisso final, aquele que deveria nortear as suas ações, continua sendo o interesse público. Ao passo em que o fim e o meio do campo publicitário e comercial é o cliente.

O jornalismo desenvolvido via acordos comerciais, apesar de se valer de algumas técnicas e preocupações inerentes à atividade jornalística, aproxima-se sobremaneira do terreno publicitário. O que não seria nenhum pecado capital caso ficasse claro, ao leitor, de onde e por quem se fala. Dar nome aos bois já seria uma tremenda atitude de lealdade e respeito para com o cidadão que pensa estar comprando uma lebre de informação, mas que no final das contas acaba levando mesmo é gato disfarçado.

Um comentário:

JOSÉ RAFAEL MONTEIRO PESSOA disse...

Achei seu texto bastante fluido, expressando de maneira clara a sua opinião e posição frente a o que é feito e vendido sob o manto do jornalismo. Aproveito a ocasião para felicitá-la pela escolha de mundo de "Lewis Carrol" para ilustrar seus pensamentos.

Bem, geralmente não "rasgo ceda", mas seu post/artigo vale.

Abraços.